Poemas · Outubro 26, 2021

Variação sobre um poema de Marçal Aquino, de Ronaldo Cagiano

para Luiz Roberto Guedes

Outro dia
faleceu a puta mais antiga
da cidade.
Devorada por um câncer,
a quimioterapia rareou seus cabelos
impingiu-lhe uma face esquálida
e a boca semi-aberta e murcha
realçava a minúscula
povoação de dentes.

Seu tempo, um rol de incertezas.
Sua vagina, um cemitério de espermatozóides.
Jamais reclamou da sorte,
não teve patrão nem FGTS
não falava mal dos políticos
respeitava as religiões
pagava as contas em dia
mas desconhecia o que foi
o maio de 68.

Em certa manhã de primavera
viram-na contemplando
os flamboyants da Avenida
como uma dama num quadro de Van Gogh.

Em um Natal distante
levou presentes às crianças do Orfanato
e assistiu à Missa do Galo
indiferente ao aço dos olhares
à labareda dos comentários.
Gostava de jogar na loteria
na esperança de mudar de vida.
Enquanto seu enterro atravessava a cidade
o comércio não baixou as portas
um taxista palitava os dentes
um mendigo inventariava uma lixeira
o engraxate sentado na barbearia
observava o comboio ferroviário
que invadia a cidade feito uma língua metálica
como tantas foram as que lhe roçaram a buceta.
Falavam que ela era amante
de um mandachuva da política
mas nunca frequentou os clubes
não saiu na coluna social
nem recebia convites
para as solenidades da prefeitura.

Restaram-lhe tantas rugas
crateras de celulites
feixes de pelancas pelo corpo,
corolário das entregas

mas se importava mesmo
é com as cicatrizes na alma.

Votou sempre na Arena, mas amava JK
não sabia o que era estadista
mas chorou no suicídio de Vargas
tinha medo de comunista
ajudava ao asilo de idosos
não passava debaixo de escada
mas se confessava aos domingos.

Dizem que emprestava dinheiro
detestava a servidão de gigolôs
acompanhava a novela das oito
era viciada em cibalena
e guardava um serrote,
lembrança do pai marceneiro.

Se amores teve, nunca disse seus nomes,
mas a foto de um galego de chapéu
dividindo espaço na penteadeira
com batons, esmaltes e brincos,
falava dos caminhos de um coração
tão distantes como a esperança
que sempre a desacompanhou.

Morreu sem nenhuma presença
sem vela nem orações
a puta mais antiga da cidade. Mas a enfermidade
da qual nunca se livrou
foi uma tristeza
escondida em suas vísceras,
a jornada na náusea da noite.
Um dia alguém quis saber
por que não teve marido nem filhos.
Outro, a razão de sorrir com tanta facilidade
apesar de seus desertos.
Mas de si não escondia
que a rotina e a maternidade
e uma vida feliz na COHAB
trariam o desgosto e o inferno.
Preferiu a rotatividade das camisinhas
e os gemidos clandestinos
a trocar fraldas e ouvir choros.
E sua coleção de Sétimo Céu
empanturrando as gavetas
tinha mais vida que a realidade.

Findou junto com o século a puta mais velha da cidade,
sem conhecer o novo milênio
sem testemunhar o 11 de setembro
nem os terremotos do Japão
mas dentro dela outras
tragédias se passaram.

Morreu num dia sem jogo
com botequins vazios
e as unhas por fazer
sem meninos brincando na rua
sem foguetes estourando nas vilas
e os porcos de dona Alzira
cevando no chiqueiro. Uma tarde comum
com a solidão de nuvens carregadas
roupas mergulhadas no anil
a felicidade apequenada nos becos
que impunham aquele mesmo vazio
com que as árvores
sabotam as ruas no outono
e desfolham a alegria das prostitutas.

 

Ronaldo Cagiano