Artes / Poemas · Junho 16, 2023

O número fixo, de Luca Argel

quando se troca de país
depois de uma certa idade
sempre fica um rasto de coisas
que de tempos em tempos
vêm pedir a nossa atenção

uma carta que volta um documento
vencido um tio doente um gerente
de banco
há uma parte da vida
que se recusa a esquecer-nos

já dez anos de mudança passados
lá de casa ajudava-me a minha mãe
a preencher um formulário qualquer destes
que eu, do outro lado da linha
(e do mundo)
ditava:

– n.º de telefone?
– põe o daí de casa
– filho, esta linha eu já cancelei faz tempo
ninguém usa mais telefone fixo
não sei porque ainda pedem esta porcaria

e assim recebi a notícia
da morte do nosso número fixo.

aquele que levo de cor desde sempre
e que provavelmente nunca esquecerei
(nem se quisesse)
a sua ordem o seu ritmo a sua entoação

a melodia que as teclas faziam ao chamá-lo

não pude sequer saber o dia
em que deixou de existir.
ou pior:
o dia em que foi atribuído a outra casa
que não a nossa

não pude sequer despedir-me dele
ligá-lo uma última vez
sabendo onde iria tocar e que
a quem quer que o atendesse
bastaria dizer: sou eu

tê-lo era saber que era possível
sair e perder tudo
transporte agenda dinheiro chaves
mas que na lembrança estaria sempre seguro
o caminho numérico para casa

nosso número fixo
um pedaço de casa
agora transformado em souvenir inútil
código sem mensagem
peso morto na memória

apesar de tudo eu concordo com minha mãe
os números fixos
morreram
por que o nosso haveria de se salvar?

mas por favor
uma notícia destas
não se dá assim

Luca Argel