Artes / Poemas · Junho 16, 2023

caminham, os poetas, de Maria Toscano

1.
vagarosos, os poetas caminham. *

guiados por sonhos e memórias
encaminham-se para o cume da muralha
recortada de pétalas arrendada,
denteada, coada pelos dias
guardiã das falésias feridas
ponte entre margens divididas
amiga de pássaros e voos
herdeira de azulejos e temperos
reduto de filigranas, bordados
pedra perfeita da história
do que está por fazer e acontecer.
vagarosos, andam os poetas
rente a ameias rendilhadas da dor
a laborar ao longo das passadas
que cada verso consagra e anuncia
vagaroso, lentamente, devagar
torre de menagem do mais simples e humano.
.
2.
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vagarosos, os poetas caminham
durante a extensa duração
da eternidade.

alimentam-se de sementes da palavra:
– letrinhas travessões vírgulas
claridade
umas ervas e grânulos ardentes
agridoces
apurados pozinhos e advérbios
doces
uma boa mão de sal da flor
como da pedra
cada rosto no enlace da tristeza

vagarosamente, avançam os poetas
ao longo da secular diacronia
seguindo o fuso horário das comoções
a na linha a vibrar
em redenção.
pouco sabem. e, por isso, são os magos
magistrais do que perdura
e ilumina
e, por seu brilho, herdamos a mudança
que nos anima.
vagarosamente os poetas vão
devagar
célere e certa corrida do efémero
incerto eterno.

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3.
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seguem passadas despercebidas para outros
óbvias e inúteis no caudal das contabilidades.
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devagar, em seu singular caminho
os poetas abrem mundos e destinos
sobre a pedra por onde vão e se guiam
por entre a pedra que moldam, à mão, ao peito
com o fôlego da língua da emoção e da voz
cuidadosamente lentos, vagarosos
manobrando o lápis e o maço, sua memória.
.
nenhuma calçada exibe poemas assim.
.
nenhum passeio nem largo ou praça
contém intactos seus fulminantes versos.
.
vagarosos, os poetas caminham
pelas pedras despercebidas para outros.
porque óbvias e inúteis calçadas
ao abrir caminhos os poetas abrem destinos
com a pedra que trabalham à mão
e à mão é gerada pela mão e o labor
de outras pedras, vidas talhadas.
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no fim, tudo se resume à herança da pedra.
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nada sobrevive à brancura desse pó no
a unir o exímio tapete de pedrinhas
cortadas unidas aliadas
em dispensáveis motivos, desenhos inúteis
que só os poetas observam e apreciam
quando, vagarosos, atestam por seus caminhos
a íntima ligação das coisas belas, inúteis
de onde brota e emana o fulgor da humanidade.
.
4.
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vagarosos parecem os poetas
parece caminharem lentos, pausados
distantes, até mesmo alheados
dos desníveis no terreno da humanidade.
é pura ilusão de óptica essa ilusão.
com a mestria da fala e do verbo
os poetas sobrevoam praças e ruas
voam através dos campos e dos tempos
que houve, há e podem fazer-se haver.
seus passos parecem lentos na velocidade

imensa e voraz com que dispensam mapas
estranhos ao fluir da liberdade.
seu veículo é a atenção implacável
ao contínuo mover das criaturas
entranhas do fluir da liberdade.
dos mapas só conhecem a absoluta
abertura da paisagem por rasgar
montanhas. ravinas. asas. liberdade.
espaços e tempos são dimensões
estranhas, vazias e esquecidas
na travessia transversal da liberdade
gentes feitas de longes e innitos
anal, os poetas caminham velozes
no voo da palavra com que semeiam a liberdade.
.

Desde Leiria, a 23 Abril/2022, até à Figueira da Foz, a 7 Maio/2022.
Maria Toscano