Poemas · Janeiro 20, 2022

Generosidades II, de Rita Taborda Duarte

Como é a tua vida com uma mulher
vulgar, sem divino?
Agora que destronaste a tua rainha
e tu mesmo renunciaste ao trono,
como é a tua vida?
Marina Tsvetáieva
(tradução/versão de Paulo José Miranda)

 

Como é a minha vida agora
sem um homem vulgar?
Mais triste, não?…

Triste como perder o chão
de um sorriso espúrio ou
a alegria exígua da noite
extinguindo o dia.

Nem que seja por um instante (um fósforo ardendo)
quando se toca o zénite da cegueira
até ao raso de um poço fundo;
depois de alcançado o imo pródigo
de um coração corrupto e descomposto
como saber regressar, voltar atrás…

Esterilizar os lençóis a pele poluída?

Como vivo agora sem esse homem vulgar e
sem divino, que circulava como sísifo
carregando a pedra da banalidade
às costas?

Há que voltar atrás,
negar gomorra, sacudir o sal
do corpo e acolher de novo
a lucidez puríssima
das manhãs do Olimpo.

Eu, Madalena de rastos,
cumprindo com desvelo
a plenitude do amor mais frívolo
a transcendência de uma paixão asmática.

Respirando, num silvo agudo, a poalha de vidro,
aspirando a bomba, a falta de ar, minuto a minuto,
vencendo cada beijo a cortisona.

E os coágulos do sangue coalhando
no coração sublime.

A minha vida, agora, sem esse homem vulgar:

Ser Helena em Tróia,
subindo, sem esforço, ao pedestal,
mármore precioso de carrara,
minha pertença, de onde
houvera tombado para ir habitar
o trono plástico de um homem        vulgar.

Como é agora, a vida, sem esse homem?

Melhor, não?

Voltei a dançar descalça

sem medo de ferir a palma dos pés
com o engodo espinhoso do fastio
dançando entre os meus
a música livre clara e límpida dos vitrais
O peito colado ao coração dos deuses…

Acima de tudo melhor, muito melhor,
do que essa mulher, pobre mulher sentada,
agora, a seu lado no tamborete grosseiro de verga
onde se descansam os homens
banais.

Desventurada penélope, pobre, tão pobre
esperando e esperando, quase velha, as costas
curvas sobre o tear, as mãos ásperas e tesas
bicadas da costura, sonhando ulisses
já repassado por todas as mulheres
todas as deusas, feiticeiras – até por mim

Melhor, bem melhor, que essa mulher mortal
fiando em sonhos um ulisses qualquer:
Qualquer um lhe serviria, mesmo que velho,
senil, imundo, sem cabelo
mas ainda assim, ulisses, com a cicatriz
encardida no tornozelo.

Pobre mulher em Ítaca, tão só, tão pobre,
roendo a tristeza da ilha a pobreza do sal
o mar em redor    só sal em toda a volta,

Pobre mulher tecendo ulisses
que afinal não veio: nunca virá
(e qualquer um lhe serviria
desde que lhe chegasse com os ventos
vinte anos, trinta anos, cinquenta:
esperaria quanto tempo
os deuses lhe concedessem)

Triste penélope nenhum ulisses, nem argos, pretendentes,
mulher vulgar sem trono, a teia feita por mil vezes
e desfeita por outras tantas mil,
desacorçoada penélope as mãos em sangue
os olhos quase cegos bordando noite dentro.

Velha mulher ainda jovem, gengivas nuas
acolhendo o único afogado inútil
que deu à costa inânime, encalhado
num enredo de lodo e limos
arrastado pelos mares.

Um homem rude, vulgar, com a ferrugem
expressionista dos dedos esfolando-lhe a pele
como se fora carícia.

E a minha vida? Era isso que perguntava.
Como é a minha vida agora sem esse homem
vulgar?

Melhor.
Muito melhor, não?

 

Rita Taborda Duarte