Poemas · Outubro 21, 2021

Sem título, de José Ricardo Nunes

Voltar aqui não estava fora de questão,
embora não fizesse parte dos meus planos.
E recordo-me de que jurara não mentir.

Abro o caderno. Leio palavras
que perderam o sentido definitivo
que tiveram quando se juntaram. Outras
nunca foram sangue nem cautério.

Encosto o ouvido ao ombro, acredito
que escrevo isto. Mas ao chegarmos às comportas
o céu enche-se de escaras. E dou comigo
a suspeitar que não fui feito para ter
na minha vida a minha vida.

Fiz cinquenta e três em Dezembro
e sei que não tenho essa idade.
Não me sinto com idade alguma.
Foi a idade o que primeiro perdi
quando comecei a perder coisas.

Haveria de subir a escada
que o Chafes pendurou em São Cristóvão.
Subir a escada e voltar a descer, arrumar
a minha cadeira, juntar-me.

Também escrevi movido pela agitação
que o Sol transmite às pessoas
em dias iguais ao dia de hoje. Escrevi
que seria preferível a deriva não ter fim.
E poderia ter escrito muito mais coisas.

 

José Ricardo Nunes