Artes / Poemas · Junho 16, 2023

Impressões no sul da Ilha, da Ilha da Madeira, de José Viale Moutinho

1
Uma ilha é um bom pedaço de pedra bruta
cercada de alguma ansiedade, o que é
sempre necessário para formular um grito
interior e apetecer as amplas asas vermelhas
para encontrar um espaço nunca sonhado,

há belos barcos em torno da ilha, ilhéus,
ilhotas, fajãs, gorgulho, densas muralhas
naturais donde se vê o fim do mar agreste
e o universo tão triste dos calhaus rolados:
aí no passeio procurando deixar de pensar,

mas quantas pessoas se sentam no muro
ao pé do farol, com uma poncha gelada
a fingir as meditações às horas impróprias,
poderemos palmilhar as levadas, as veredas,
e promenades do novo fabrico do poder local

e o que sobra para nosso gozo: um cais
para cargas e descargas de mentiras
com uma grua erguendo as assimetrias
escuras modeladas no pior dos silêncios
onde nos refugiamos, como num covil,

2
Se a ilha é esta, se a ilha ainda existe
com as suas montanhas devassadas,
com os seus vinhos doces, bananas
e outros prazeres arrancados às pedras
e colocados no fogo, subo as escadarias

até chegar ao céu junto das nuvens vãs,
donde vejo descer sobre o mundo a raiva
dos deuses, o canto buliçoso das cagarras
ao cair das noites quentes da Calheta,
aí vejo as areias roubadas aos desertos,

daqui vê-se o mar, o poente, a cada passo
ouço essas vozes cruas devorando os olhos,
e em cada despenhadeiro, lá bem a norte,
sobre o perigoso ferver denso das borrascas,
homens fatigados andando sobre as águas.

3
Ainda gostaria de inventar outra ilha
sobre esta ilha de modo que cada vez
ela fosse uma e outra ilha bem acima
de todos estes secretos tesouros,
logo se despisse na nossa imaginação,

ouve as vozes roucas de andar à tona
do mar (ou deverei dizer dos mares?)
do norte e o silêncio gelado do sul,
da baía de Machico a S. Lourenço,
essa espada com toda sua claridade,

a ponta vai iluminar os navegantes
sentados nas esplanadas do velho
Golden Gate, à esquina do mundo
onde aguardo os meus fantasmas
com a paciência de outros tempos,

4
Na ilha há muitas grutas que vão
às rudes profundezas da paisagem
que ondula, aumentando a terra
e os sonhos em que não acreditamos
olhando por aí Câmara de Lobos,

aí, onde todos acordam de noite
e os barcos ondulam amarrados
ou ficam voltados para o mar negro,
(um Churchill pintando na varanda)
emborcando copos e mais copos
de poncha, nikitas e pés-de-cabra,

essas lágrimas misturam-se além,
quando se vê o rasto da lua nas águas
que são muitas, as águas aguardando
a chegada dos corpos dos cansados,

5
Quando alguns sobem ao Monte,
falando inglês metem-se nos carros
dos carreiros e descem, aparvalhados,
vertiginosamente até que o pavor
os obrigue a lançar a carga ao mar,

6
Please, quero sair imediatamente
desta funesta tempestade letal,

7
Lá longe, mas sem deixar a catedral,
cam as selvagens onde o pirata
ocultou (bem oculto) os tesouros
dos galeões da rota do saque do Peru,
(que nunca ninguém alguma vez viu),

Funchal, Abril daquele ano falso.

 

José Viale Moutinho