Poemas · Junho 24, 2021

Trilogia da memoração, de Paulo Assim

1
Sei de uma aldeia onde em todas as habitações
existe um búzio sobre as cómodas das salas-de-estar.
Jamais algum dos seus habitantes viu o mar, afianço-vos,
ou sabe sequer o que é o mar, e no entanto,
levando o búzio na concha da mão à concha do ouvido,
sente o mar e diz: é o mar: como se dissesse: é o destino.
E no entanto o destino não se vê nem se ouve nem se pode
tocar.
Os habitantes dessa aldeia nunca viram o mar,
nem sabem que é salgado, nem que é líquido, azul.
Apenas sabem que o têm dentro de casa.

2
Sei de outra aldeia onde todas as casas são brancas.
Mesmo as pessoas que passam o tempo
a misturar a cal efervescente nos potes alquímicos,
mesmo essas são brancas de fora para dentro.
Dizem elas que o branco é a cor mais fresca, e é.
Na verdade, as casas têm a frescura do interior dos cântaros
e às pessoas com sede basta-lhes olhar as paredes
para sonharem com uma fonte
ou um ribeiro que desce a montanha,
um ribeiro destinado a irrigar o corpo branco em sobressalto.

3
Também vos conto a história de uma outra aldeia
onde as pessoas não falam: cantam.
As crianças adormecidas acordam com uma canção,
o mesmo quando adormecem ao colo das mães.
As mulheres assentam os pés nos seixos do rio
e cantam ao ritmo dos diques enquanto branqueiam a roupa.
Os homens afinam a voz no vaivém da gadanha enquanto
os caules das searas prenunciam o pão para a ceia.
E cantam mesmo quando morre um filho da terra.
Diz-se que foi por inveja aos pássaros que deixaram de falar.
Não, não falam: cantam, e nunca se zangam umas com as outras.

 

Paulo Assim