Artes / Poemas · Maio 8, 2023

o menino perdido (acto 2), de Gabriela do Amaral

o mais difícil era ver o homem desaparecer
e quanto mais o homem desaparecia
mais o menino aparecia
o mais difícil era ver o homem desaparecer
e quanto mais o homem desaparecia
mais o menino aparecia
tímido
envergonhado
com fome de colheres dadas à boca
vulnerável
mas o mais difícil era ver desaparecer o homem
ao longe
sem ninguém
esquecido do seu passado
dantes grande
agora pequeno
mas o mais difícil era ver o homem desaparecer
escorrer pelo rosto
irrigar os pulsos
e se perder na ponta dos dedos
era o mais difícil de tudo
ver desaparecer
as grandes costas largas
os mergulhos de submarino
por debaixo da plataforma de saltos
os degraus da pirâmide do sol
ao centro da cidade do méxico
os rodízios de carne
os couverts com azeitonas
brioches e calabresas
os profiteroles com calda
os cafés com creme
o mais difícil era ver
desaparecer o homem
perder as formas
derreter-lhe o rosto
virar-se em gota
sumir-se em cometa
o mais difícil era ver
aquele homem desaparecer
e quanto mais ele desaparecia
mais o menino aparecia
e pedia sorvetes
e pedia massagens
e pedia desenhos
e pedia afagos
e pedia carinhos
cães
carrinhos de rolimã
figurinhas de almanaque
e quanto mais o homem desaparecia
mais o menino queria
bolinhas de gude
fruta de quintal
primos nos fins de semana
festas de aniversário
bolos de cenoura
mousses de chocolate
futebol de meia
casa cheia no natal
mas o mais difícil
era ver desaparecer o homem
e quanto mais ele desaparecia
mais o menino aparecia
e só assim
desta maneira
ele podia acreditar no futuro
e se permitia colocar de novo à boca
o nome de sua mãe

Gabriela do Amaral