Traduções · Julho 20, 2021

Navegar sobre uma lágrima, de Alfredo Pérez Alencart

(José Manuel Capêlo, in memoriam)

Um poeta há-de morrer a desfolhar idades, esbracejando
vertiginosamente entre remoinhos que nunca tinha cruzado.
Navega ou salta sobre uma lágrima, bêbedo de silêncios
após lembrar a infância que emudece, os campos matrizes
de ressecados caules, as pedras do velho território da fronteira…
Dentro dos seus olhos estão as pegadas daquela humanidade
que arranca corações assim como destrói os jardins.
Um barbudo lusitano não sente medo de setas ou munições:
contempla a fenda que há na sola do seu sapato
e sorri benevolente ante aqueles que andam a preparar a emboscada,
o rumor ou os arranhões. Semeiam hectares de inveja,
para alimentar-se, os inimigos do poeta todos os dias injustiçado.

Oh, Deus, por que será que se enfurecem os insensíveis?
Por que trespassam sem compaixão o gordo templário
antes de algum prodígio? Avançam as miragens
durante a viagem até à breve eternidade. Agitam-se as bandeiras
enquanto ele vai descobrindo abraços fraternais, goteiras
na carnalidade dos céus, páginas ainda não fecundadas…
Um poeta há-de morrer introduzindo a chave na fechadura
dos espantos, onde descobre esperanças ao menor arrepio,
tirando teias de aranha das pálpebras e dos pressentimentos.
Ao longo da Margem alguém chora perante a transparência
do seu corpo imóvel. Mas recupera de todos os estragos
e rema e rema sobre uma lágrima de mil gerações.

Um poeta é apenas um pássaro que aguarda a arca dum outro dilúvio.


(José Manuel Capêlo, in memoriam)

Un poeta ha de morir deshojando edades, braceando
vertiginosamente por remolinos que nunca había atravesado.
Navega o salta sobre una lágrima, borracho de silencios
tras recordar la infancia que enmudece, los campos matrices
de resecos tallos, las rocas del viejo territorio fronterizo…
Dentro de sus ojos están las huellas de aquella humanidad
que arranca corazones al igual que destroza los vergeles.
Un barbado lusitano no siente miedo de flechas o municiones:
contempla el hueco que hay en la suela de su zapato
y sonríe benévolo ante aquellos que preparan la emboscada,
el rumor o los arañazos. Hectáreas de envidia siembran,
para alimentarse, los odiadores del poeta a diario ajusticiado.

Oh, Dios, ¿por qué será que se enfurecen los insensibles?,
¿por qué arponean sin compasión al orondo templario
toda víspera de algún prodigio? Avanzan los espejismos
durante el viaje a la breve eternidad. Se sacuden las banderas
mientras él va descubriendo abrazos fraternos, goteras
en la carnalidad de los cielos, páginas aún no fecundadas…
Un poeta ha de morir metiendo la llave en la cerradura
de los asombros, hallando esperanzas al menor escalofrío,
quitando telarañas de los párpados y de los presentimientos.
Por la Orilla alguien llora cuando va viendo la transparencia
de su cuerpo inmóvil. Pero se recupera de todos los estragos
y rema y rema sobre una lágrima de mil generaciones.

Un poeta sólo es un pájaro que espera el arca de otro diluvio.

Alfredo Pérez Alencart