Opinião / Recensão · Junho 10, 2021

Recensão. Paulo Costa

RECENÇÃO CRÍTICA SOBRE A OBRA PREMIADA COM O I PRÉMIO DE POESIA FRANCISCO RODRIGUES LOBO 2017

Livraria Arquivo | Fundação Caixa Agrícola de Leiria

INSTRUMENTAÇÃO DO FOGO, de Carla Pais

A Explicação do Fogo quando tudo é (cl)amor por dentro do olhar

Paulo José Costa

Apresentação da Obra na Livraria Arquivo – Leiria | 23 de Março de 2018

Para dar início a uma breve explicitação da Obra Instrumentação do Fogo de Carla Pais, nada melhor do que começar por ler o verso que lhe serve de mote e epígrafe, e que presumo seja da sua autoria, versando assim:

Se um dia o amor se puder descrever ainda mais

que seja na paciência de um verso para sempre imperfeito

Com pleno fulgor, entramos assim, num universo que não nos deixa qualquer réstia de dúvida, de que este conjunto magnífico de Poemas se dirige à dissecação do Amor, enquanto sentimento inacabado, imperfeito e enganador, acto de crueldade e estranheza, campo de deleite e mistério, que assola à pele e aos sentidos dos seus actores.

Instrumentemos, por isso, o afogo que flameja no coração desta Obra, urdida na Arte e modo de combinar os acordes de diversos instrumentos, ora vocabulares, ora subliminares.

A autora ousou pelo seu traço e engenho conjugar prelúdios e partituras, em que o manifesto e o inaudito, a desilusão e o prazer, a cadência e o compasso do silêncio, o mistério e a afirmação da dor, a saudade e o regozijo, são expressos num tom de individuação, como que fazendo apelo ao acto libertário que somente um Poema encerra.

Este é um Amor (d)escrito no feminino, pois só o assomo da vida sentida e avivada no ventre materno, colo que gera um outro encantamento, uma outra carne, um outro rasgo de vida, pode enformar estes versos, que em catadupa surgem como um louvor à estância desse dicotómico sentimento, que se mistura e entranha em elementos que nada têm de comum, mas que pelo paradoxo e ilogismo convidam a uma mestria do pensamento.

Veja-se, a título demonstrativo, como os vocábulos “sangue”, “seios”, “parir” se entreabrem e conjugam com outros, como “rio”, “vento”, “colinas”, “caminhos”, “terra”, criando uma “confusa geometria sem equação”, mas que nos dirige para um território que jamais seria acessível por outra “janela” – Poema Pág. 38 e 39 – Sangue Vivo a Sacudir os Seios da Terra.

Em vários Poemas como este, há uma reinvenção do campo vocabular, uma pronunciação de atmosferas que possibilita um espraiar da imaginação, muito além do “não dito” e da exercitação comum do entendimento, abrindo as portadas da alma à sensitiva voragem da reverberação, ao afogo da sensualidade (Poemas Perde-te Aí, pág. 25 ou A sombra do teu beijo pousada no meu colo, pág. 27).

Ao lermos estes Poemas, ousamos entrar na vontade eterna de atiçar a escuridão indecisa que trazemos por dentro, como se uma “labareda líquida” ateasse a penumbra do mundo e do peito, arriscando preencher com lume e revelar com chama, o espaço escuro e frio das ausências, desfazendo os desenganos e as mágoas.

Ainda que esta Poesia não recorra ao silogismo – sistema de raciocínio desenvolvido por Aristóteles em que afirmações prepositivas levam a uma conclusão lógica, na ampla explicitação da temática do Amor patente neste Livro, há constantes inferências, diversas e múltiplas proposições que emergem de imediato, activando a capacidade imagética, que numa outra circunstância ou momento, num outro fluxo, numa leitura sucedânea e repetida, gera novos campos mentais ao leitor.

Recorrendo à célebre metáfora camoniana, que usa a antítese para desenvolver as suas preposições, também aqui o “Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente”, tornando-se antítese e uma figura de linguagem onde se busca a aproximação inaudita de ideias opostas. Deste modo, a autora consegue aproximar coisas que parecem distantes para explicar um conceito tão complexo como o mais nobre sentimento humano.

Carla Pais usa do pensamento ilógico para patentear um sentimento humano muito profundo e complexo, o Amor. O tema do amor é muito caro à Poesia, mas nem todos sabem enlevá-lo, instrumentá-lo, dominá-lo, adorá-lo.

Neste Livro, podemos observar que essas premissas opostas também estão unidas por uma ideia de causalidade: o mesmo fogo, o que causa o ferimento e que leva à dor, é aquele que produz saciação e deleite. Essa relação ajuda a unir ainda mais o exórdio do poema e a entender a imagem que a autora nos transmite da mundividência de amar alguém.

O amor, assim como tudo na vida, é um jogo de dualidades, de ambiguidades, que faz parte do cerne do ser humano. Não existe sentimento humano que possa ser explicado de forma clara e simples. Porém, alguns escritores conseguem exprimir de forma inteligível e inigualável, coisas tão complexas e ambíguas, como esse alimento que move a existência.

É, pois, mais do que pressentido, que o Amor genuinamente instrumentado, na sua crueza e encantamento, orienta o fundo deste livro. Contudo, não é abusiva a inferência de que os poemas tendem a orientar-se no sentido da busca de um domínio de redenção. Se bem que esta busca seja, maioritariamente, dirigida à relação homem-mulher, façamos uma legítima alusão à natureza da Poesia – a da sua componente salvífica. Estes dois elementos constituem, a meu ver, duas janelas para a leitura do livro e, de alguma maneira, subjazem as várias facetas que já mencionei anteriormente. A primeira janela revela a presença de um elemento existencial de busca de sentido, e a segunda revela a Poesia enquanto instrumento existencial final dessa mesma busca. A primeira é enunciação de uma falta, de uma ausência, a segunda marca a superação dialógica dessa falta através da respiração poética.

Carla Pais é uma idealista de punho e engenho apurado. A sua Obra – Instrumentação do Fogo, é um belíssimo Livro, de uso fino da palavra, da criação de figuras e imagens que nos ajudam a entender um pouco de nós mesmos, quando tudo pode ser “maciez”, clamor e brandura onde nos possamos perder dentro do olhar.