A dieta dos marinheiros Song revelada: a análise do naufrágio Nanhai No. 1 fornece informações sobre a vida marítima na China medieval. A estreita colaboração entre especialistas de diferentes áreas está a permitir conhecer aspectos da história que nos eram desconhecidos. Desta vez, uma equipa multidisciplinar de arqueólogos e historiadores conseguiu reconstruir em detalhe a dieta dos marinheiros do Império Chinês durante a dinastia Song (960-1279 d.C.). O avanço foi possível graças à análise dos restos do naufrágio do Nanhai No. 1, um navio mercante que afundou no mar da China Meridional por volta do ano 1183. Os resultados, publicados num artigo da revista Journal of Maritime Archaeology, além de revelarem os alimentos que a tripulação consumia habitualmente, também permitiram reconstituir os padrões sociais, económicos e culturais que guiavam a vida marítima na China medieval.
Um navio mercante transformado em cápsula do tempo
O Nanhai No. 1 é um velho conhecido da arqueologia subaquática. Foi descoberto em 1987 ao largo da costa de Guangdong, a cerca de 25 metros de profundidade, mas só pôde ser recuperado em 2007 graças a uma operação pioneira que permitiu preservar o navio, a sua carga e os sedimentos que o rodeavam. O estado de conservação da embarcação, com mais de 22 metros de comprimento, é excepcional para um naufrágio com mais de 800 anos.
A equipa de investigação aplicou uma abordagem inovadora que combina fontes documentais com evidências arqueológicas diretas. Assim, através da análise integral dos restos orgânicos — vegetais, animais e líquidos — encontrados no interior do navio, conseguiu reconstruir os hábitos alimentares da tripulação.
Água, álcool e chá: as bebidas essenciais em alto mar
Nas longas viagens marítimas da época Song, a água potável era um bem essencial para a sobrevivência. Era armazenada em grandes jarros de cerâmica ou recipientes de madeira, embora as poucas evidências materiais diretas indiquem que muitas dessas estruturas desapareceram com o tempo. No entanto, no naufrágio foram encontrados vasos rotulados como Qiao Qian Gongyong (“vaso de uso comum”), que bem poderiam ter servido para armazenar água.
Juntamente com a água, o álcool desempenhava um papel fundamental tanto na nutrição como nas relações sociais a bordo. Foram documentados mais de 400 tipos de produtos transportados por mar na época, entre eles, numerosas variedades de bebidas alcoólicas, que também faziam parte de rituais religiosos e banquetes coletivos. Os recipientes com inscrições que identificam o conteúdo como bebidas espirituosas, bem como os vestígios de leveduras e bolores utilizados na fermentação, confirmam a importância do álcool a bordo.
O chá também ocupava um lugar de destaque. Embora, devido à sua tendência para se decompor em ambientes húmidos, não tenham sido encontradas folhas conservadas, foram recuperadas etiquetas de madeira que mencionam este produto. O consumo ritualizado do chá fazia parte do dia a dia, mesmo em alto mar, como documentam testemunhos contemporâneos.
Carne e hierarquia: o predomínio da carne de carneiro
Uma das surpresas mais notáveis foi a presença abundante de ossos de carneiro, em claro contraste com a escassa presença de ossos de porco. Esta descoberta é surpreendente, uma vez que a tradição marítima costumava preferir porcos a bordo, pois eram mais fáceis de manter durante a navegação. No entanto, no Nanhai No. 1 foram identificados 86 restos de ovelha contra apenas 9 de porco.
Os investigadores atribuem este fenómeno à presença de passageiros muçulmanos a bordo, tal como sugerem várias inscrições em árabe encontradas em peças de cerâmica pessoais. A necessidade de respeitar as suas restrições alimentares, em particular a proibição do consumo de porco, teria motivado uma maior presença de carne ovina no navio.
A análise dos ossos revelou ainda práticas de desmancha, assado e conservação por salga. Além disso, algumas peças parecem ter sido selecionadas e embaladas com especial cuidado. Segundo os investigadores, isto sugere que as rações eram distribuídas de acordo com o estatuto social dos tripulantes: os cortes de carne mais apreciados eram certamente destinados aos indivíduos de maior posição.
Frangos, gansos e rituais de proteção
Além da carne ovina, os marinheiros também consumiam aves, como galinhas (46 exemplares) e gansos (40). Essas aves eram fáceis de criar a bordo e forneciam tanto carne quanto ovos. No entanto, sua função não se limitava à alimentação: as galinhas também eram usadas em rituais de adivinhação para prever a sorte da viagem, através da leitura de seus ossos após o sacrifício.
As crónicas também descrevem o seu uso como oferendas às divindades protetoras do mar, durante as cerimónias realizadas antes do embarque. Desta forma, as aves não só forneciam proteínas essenciais à dieta, mas também faziam parte do sistema simbólico-religioso da navegação chinesa.
Pesca e ferramentas: o peixe como sustento vital
77% dos restos vertebrados recuperados no naufrágio correspondem a peixes ósseos (Osteichthyes), o que sublinha a sua importância como fonte primária de proteína. Os marinheiros utilizavam técnicas de pesca desenvolvidas e sustentáveis, que incluíam o uso de grandes anzóis iscados com frango e redes com chumbos, como confirmam os objetos recuperados nos porões. Algumas vértebras de peixes foram até esculpidas para criar adornos.
Grãos, frutas e especiarias: uma despensa vegetal diversificada
A bordo do Nanhai No. 1 também foram recuperadas mais de 3.000 sementes e frutos pertencentes a pelo menos 19 espécies vegetais. O arroz, em particular, aparece como o cereal mais importante, coerente com o seu papel central na alimentação do sul da China durante a dinastia Song.
Entre os vegetais, destaca-se a descoberta de sementes de abóbora-de-cera (Benincasa hispida), usada tanto fresca como em conserva. Quanto às frutas, foram identificados caroços de ameixa, azeitona preta chinesa, jujuba e noz de areca, muitos deles conservados por secagem ou decapagem, o que reflete um conhecimento sofisticado das técnicas de conservação de alimentos.
Também foram encontradas especiarias como a pimenta preta (Piper nigrum) — provavelmente importada do sudeste asiático — e a pimenta de Sichuan (Zanthoxylum bungeanum), ambas valorizadas pelas suas propriedades culinárias e medicinais. Estas plantas, além de enriquecerem os pratos, podiam ter usos terapêuticos para combater doenças ou aliviar mal-estar durante a viagem.
Um reflexo da vida social na Rota Marítima da Seda
A dieta reconstruída do Nanhai No. 1 é um testemunho direto do dinamismo, da diversidade e da complexidade das sociedades marítimas do século XII, que navegavam entre culturas, religiões e línguas e adaptavam as suas práticas cotidianas às necessidades da convivência e do comércio.
A presença de passageiros árabes, a preparação diferenciada dos alimentos, as técnicas avançadas de conservação e a cuidadosa distribuição do espaço a bordo mostram que estes navios funcionavam como verdadeiros microcosmos sociais flutuantes. O caso do Nanhai No. 1 demonstra que a arqueologia marítima pode trazer uma nova dimensão ao estudo da história social: uma que conecta os vestígios materiais do passado com as vidas dos marinheiros, cozinheiros, comerciantes e passageiros que, dia após dia, compartilhavam a mesa em alto mar.